do site Correio Cidadania
POR GABRIEL BRITO*
Em conseqüência das graves violações a seus direitos, os índios guarani kaiowá se articularam com redes de militantes dos direitos humanos após o assassinato do cacique Nísio Gomes, desaparecido desde o último dia 18 de novembro, e vieram a São Paulo expor o genocídio sistemático do qual se tornaram alvo. Nísio se encontrava dentro da Tekoha Guayviri, em Aral Moreira (MS), uma das valorizadas localidades do cerrado, grande cenário de disputas entre o agronegócio e seus ocupantes originários, quando sofreu um ataque de dois motoqueiros encapuzados, que atiraram à queima roupa, seqüestraram seu corpo e outros três indígenas adolescentes – todos até hoje procurados.
Diante de mais um crime contra os índios brasileiros, diversos integrantes de grupos e entidades que lutam em defesa dos direitos humanos, integrados em torno da Rede de Proteção aos Militantes Ameaçados, realizaram ato de solidariedade ao povo guarani no último dia 30 de novembro, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. A atividade, que foi precedida por uma entrevista coletiva em sala anexa, contou com a presença do cacique guarani Ládio Verón e Sassá Tupinambá, membro do Movimento Indígena Revolucionário.
“Eu vim aqui para São Paulo porque trago um clamor popular! O clamor de um povo que derrama seu sangue por um pedaço de terra! É um massacre contínuo, já tivemos 18 crianças assassinadas. Mas não vamos recuar. E o nosso oxigênio para essa luta, na qual contamos com a ajuda de vocês, é a homologação de terras”, afirmou Ládio, cujo pai, Marcos Verón, também cacique, foi assassinado pelo agronegócio local em 2003.
Como se sabe, os guarani são a maior etnia indígena do Brasil, composta por ao menos 80 mil pessoas, cerca da metade dentro do estado do Mato Grosso do Sul. Rico em sua vasta vegetação e rios, o estado é símbolo do agronegócio, com terras cada vez mais adquiridas por grandes corporações, nacionais e transnacionais. Entretanto, seu território é recheado de terras ancestrais indígenas, expropriadas pelo homem branco ao longo dos séculos.
“A maioria dos laudos antropológicos das terras requisitadas pelos índios para homologação ficou pronta em 2007, mas não houve homologação. No mesmo ano, o Lula assinou o acordo do etanol e dos biocombustíveis com o Bush… A mídia fez todo aquele carnaval anunciando a boa nova, a nova porta para nosso progresso em cima disso”, situa Sassá.
A lembrança de tal acordo explicita mais um enorme entrave para os sempre demorados processos de reconhecimento, demarcação e entrega de terras aos indígenas. Tarefa de responsabilidade exclusiva do governo federal, através da Funai, que por sua vez contrata os antropólogos para a missão de estudar – dentro de critérios por vezes polêmicos – quais seriam as extensões de determinada terra requerida pelos índios.
No entanto, cada vez mais ancorado num modelo primarista e agroexportador, o Brasil tem dado suporte pesado e bilionário ao latifúndio, histórica fonte de injustiça social, violência e depredação ambiental. O quadro segue intacto, e jamais impediu o governo petista e sua base aliada de eleger o agronegócio como um dos esteios da economia e do “desenvolvimento nacional”. Assim, mesmo com uma extensão territorial maior que dezenas de países, o solo sul-mato-grossense é cada vez mais alvo de investimentos agro-minerais e pecuários, dos quais se originam violentas disputas territoriais.
“O cenário local é de devastação, com terras do estado repletas de empreendimentos, projetos. Um pé de cana, uma cabeça de gado, um plantio de soja valem mais que a vida de um índio, valem mais que as crianças indígenas que eles matam”, conta o cacique Ládio, mencionando toda a covardia e desumanidade dos proprietários de terras, nunca punidos pelo poder estadual, aliado e sócio escancarado do latifúndio, ou pelo governo federal, teoricamente ente que poderia atuar com isenção na questão.
Relatos de uma violência planejada e protegida
“Eles nos atacam de muitas formas. Envenenam os rios de várias formas, usam seus agrotóxicos para despejar de aviões que sobrevoam as aldeias e intoxicam, adoecem, os índios. De tempos pra cá, descobrimos que eles também colocam potes de veneno e enterram em nascentes de rios, com tampa aberta; esses venenos aos poucos vão saindo de baixo, se diluindo e misturando na água; depois, os índios usam essa água, bebem essa água contaminada. Fora isso, tem acontecido muitos suicídios suspeitos. Garotos jovens encontrados com a corda no pescoço e pendurados em árvores; porém, pela religiosidade e relação com o sobrenatural desses garotos, não é de crer que tenham mesmo se matado”, conta Sassá Tupinambá. “Alguns sofrem muito, não vêem perspectivas em mais nada, sentido em mais nada, e se matam. Mas sempre que um índio faz isso deixa um bilhete explicando os motivos do suicídio embaixo da árvore em que ele encerra sua vida”, completa Ládio.
Conforme se desenvolviam os relatos de Ládio e Sassá, o nível de consternação dos presentes apenas aumentava, pois o que se escutava eram histórias sempre vistas de forma distante dos grandes centros urbanos, apesar da conhecida violência que reina no campo brasileiro. Crimes de faroeste sem a mínima perspectiva de punição, desnudando uma total degradação dos órgãos e poderes de Estado, todos mancomunados em torno dos interesses dos “produtores nacionais” – nome que o establishment inventou para os megaempresários que dão ordens de seus escritórios do eixo Rio-São Paulo, mas nunca semearam uma terra ou fizeram uma colheita com as próprias mãos.
“Nós só queremos um pedaço de terra. Nossa luta é só essa. Não agüentamos mais perder nossas vidas, nossos parentes, crianças. Mas o único jeito para termos nossas terras de volta é retornando a elas”, insiste Ládio, expressando a convicção dos povos indígenas de não abrir mão de suas terras ancestrais, as quais consideram sagradas e impassíveis de qualquer tipo de realocação ou zona de confinamento que se proponha.
Já Sassá, comparando sua experiência de outras lutas sociais, destaca com veemência a situação de terror dos guarani, constatada após recente visita à aldeia liderada por Ládio. “Eu já militei e estive com o MST em muitos locais, mas nunca vi nada parecido com o que vi no MS, com polícia, tropa de choque, toda essa violência. Quando tive a honra de visitar e botar os pés na aldeia Taquara, não vi as crianças e animais saindo pra ver quem chegava, recepcionar, festejar, como é de seu costume. Todos vivem retraídos, com medo, recolhidos. Um clima de tristeza permanente”.
Citando a atuação militar e paramilitar cada vez mais sanguinária contra os indígenas, Sassá contou detalhes de toda a apreensão que se vive no acampamento, enquanto se espera que o governo federal finalmente entregue as terras aos seus ocupantes originais, dando cumprimento aos dispositivos da Constituição de 1988, que garantem os direitos indígenas, e também à convenção 169 da OIT, sobre os mesmos direitos e da qual o Brasil é signatário.
“Lá na Taquara eu não dormia direito, ficava assustado com qualquer barulho de carro, ficava deitado com a lanterna no peito, virando pra um lado, pra outro. Não conseguia dormir, mas fiquei feliz de encontrar por lá o Ládio e o os outros vivos. Porém, quase entramos pra ‘rede dos militantes mortos’”, lamenta.
E para provar que a violência anti-indígena é orquestrada e deliberada, basta lembrar que o agronegócio do estado e seus pistoleiros – agora funcionários de “empresas privadas de segurança” – mataram 250 índios na última década, superando largamente todo o resto do país e configurando uma situação de genocídio e limpeza étnica, tal como afirmado por diversos estudiosos das questões indígenas.
“As empresas de segurança privada – sabem como é, agora milícias de jagunços e pistoleiros têm esse nome mais bonito – funcionam com aval da Polícia Federal, que precisa dar autorização para que atuem. Algumas até são investigadas, mas nós continuamos sofrendo com elas, sendo perseguidos, ameaçados. Certo dia, um jornalista, que estava do lado dos fazendeiros, tirou fotos nossas. Mandamos apagar. Vimos que ele fez vídeo também, mas não apagou. E sabemos que essas câmeras permitem nossa identificação facilmente, o que pode ser usado pelos pistoleiros…”, sintetiza.
Dessa forma, é evidente que urge uma intervenção federal no assunto, que, aliás, já poderia ter estancado essa matança racista há muito tempo se respeitasse suas próprias disposições constitucionais e os estudos já concluídos em relação a diversas terras indígenas no estado. “Aqui aparece o prefeito e logo faz o jogo dos fazendeiros. O poder do estado está todo nas mãos das associações do agronegócio, da UDR, Famasul…”, completa.
“Eles mataram meu pai, já mataram muitos dos nossos, mas nossa luta continua e não vai parar enquanto não estivermos em nossa tekoha. Outras lideranças disseram que eu não deveria vir aqui (SP), mas achei que precisava muito vir, apesar de saber que aqui moram os mandantes do assassinato do meu pai”, atesta o cacique Ládio.
Como já citado, o crescimento do agronegócio, à custa do abandono definitivo da idéia de reforma agrária popular e favorável à agricultura familiar, foi abraçado de corpo e alma pelos dirigentes ‘democrático-populares’, que dessa forma acabam mexendo com os interesses de todo o povo brasileiro. “É o dinheiro público que financia o agronegócio, então, devemos nos sentir todos envolvidos nessa questão. É uma luta de todos, e a população e os movimentos sociais precisam conhecer nossos povos e culturas”, assinala Sassá.
Quadro sombrio
Apesar de tanta perseverança, resistência e coragem de seguir lutando, os indígenas não têm condições de transmitir uma imagem de otimismo e reversão da situação. Consideram que, após o acordo que Lula selou com os EUA sobre os biocombustíveis, houve enorme retrocesso no reconhecimento e homologação de terras, que continuam a ser ilegalmente ocupadas pelos latifundiários. Estes latifundiários, por sua vez, seguem, em parceria com a mídia comercial, mentindo ao país todo ao dizerem que precisam ser beneficiados, pois são os grandes responsáveis por colocar alimentos na mesa da população.
“Depois desse acordo com Bush, o Lula, ao invés de demarcar terras – coisa que prometeu antes de eleito ao próprio cacique Verón, em Brasília, o pai do nosso companheiro Ládio que depois foi assassinado –, passou a inaugurar usinas. Assim, os fazendeiros se organizam cada vez mais para não dar as terras a que temos direito. Já os governantes locais trazem ainda mais empreendimentos. Temos 18 usinas de etanol. Mas o projeto é chegar a 40. As águas estão muito contaminadas, as usinas estão acabando com o meio ambiente do Mato Grosso do Sul”, reforça Sassá.
Dessa forma, fica configurado um perverso quadro em que, numa ponta, os fazendeiros agem com violência crescente, já que se sentem protegidos por interesses que vão muito além das fronteiras estaduais; na outra ponta, o governo federal trata apenas de se omitir. Vale lembrar que neste ano a presidenta Dilma se recusou a encontrar e dialogar com os indígenas ao longo de todo seu primeiro ano de mandato. Não houve conversa com nenhum dos mais de 260 povos indígenas do país, incluindo (ou talvez principalmente…) aqueles que vêm sendo afetados por grandes projetos empresariais.
“Hoje o estado se resume a cana, soja e boi. E tem essas 40 usinas planejadas, com grande foco nas de cana-de-açúcar e etanol”, conta Ládio. “Agora, muitos famosos têm terras na região. Por isso os fazendeiros atacam; eles sabem que são sócios do poder, sócios dos últimos presidentes. Eu vi, não me contaram, cana plantada a 5 metros das águas do rio, plantada em barranco. Isso antes de o Aldo Rebelo presentear seus sócios ruralistas com esse código florestal…”, dispara Sassá.
Para encerrar, o militante tupinambá resume o quadro e volta a lembrar que, por muito pouco, a coletiva e o ato realizados em São Paulo poderiam nem sequer ter ocorrido. “É assim que eles vão tocando o plano de nos matar, de levar a cabo o genocídio indígena, de forma lenta, silenciosa. Sabendo que a impunidade sempre prevalece. Por muito pouco o Ládio não estaria aqui falando a vocês. Conseguimos descobrir um plano de atentado e repercuti-lo imediatamente, com ajuda da internet, em 15 minutos, para depois retirá-lo da aldeia. Existem quatro terras prontas para serem entregues, com estudos concluídos. Mas não são”.
“Ficamos à beira da estrada porque o povo guarani, seguindo suas lideranças, sua espiritualidade, entende que agora é hora de retornar às terras originais, onde estão enterrados nossos antepassados. Nós temos essa relação com a terra, para nós ela é sagrada e não se trata de dar esse ou aquele pedaço, pra nos deixar cercados de soja, de boi, de cana, com os rios contaminados”, finaliza o cacique Ládio Veron, herdeiro visível e palpável de mais de 500 anos de sangria.
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